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Nação brasileira quer um Estado que seja presente e atuante | Entrevista com Saturnino Braga


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Monitor Mercantil

19/07/2013

 
Desde o último dia 17 de junho, o ex-senador Roberto Saturnino Braga é o novo presidente do Centro Internacional Celso Furtado, instituição inspirada no grande pensador brasileiro para a questão do desenvolvimento. Saturnino destaca que o Brasil vive momento ímpar, inclusive pelas manifestações de rua, estando em condições de chegar ao bicentenário, em 2022, como grande interlocutor dos Brics (grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para uma nova ordem mundial.
 
Para ele o Estado deve liderar o investimento, mas ressalva que atualmente o grande desafio dos chamados “desenvolvimentistas”, que priorizam a distribuição de renda, é também contemplar, no âmbito desta prioridade, a questão da inflação, sob pena de perder apoio da sociedade. "Os desenvolvimentistas do passado, na sua querela com os monetaristas, costumavam dar pouca importância à inflação. Ou seja, a inflação não era encarada com a mesma prioridade do investimento”, comenta.
 
Por que Celso Furtado não foi contemplado com um Prêmio Nobel?
Celso foi nosso grande pensador desenvolvimentista. Figura extraordinária que não ganhou o Premio Nobel por um preconceito contra o Brasil que ainda existe, apesar de que após a eleição de Lula esta imagem de que não seria um país sério, começou a mudar. O Brasil conseguiu um certo êxito no desenvolvimento econômico, no contexto da América Latina, e recentemente vive o êxito político da democracia. Historicamente, isto é muito incomum. Celso foi dos primeiros pensadores a valorizar a dimensão cultural do desenvolvimento. Ultimamente, ele estava também recuperando a dimensão política desse desenvolvimento, enquanto processo que resulta das exigências da sociedade, e não do mercado. 
 
Qual sua expectativa com relação ao Centro Celso Furtado no futuro próximo?
A vocação do Centro é continuar pesquisando e debatendo, formulando, discutindo sobre o desenvolvimento na sua nova visão, que incorpora o social, o cultural e também o político. Por coincidên-cia, o Brasil está vivendo momento em que o político está clamando nas ruas. Já aconteceram outros clamores no passado, mas voltados para eleições diretas, derrubada de governantes corruptos. Agora as manifestações exigem audiência do povo, não é por acaso que não têm objetivos claros. Apenas “queremos democracia na qual sejamos ouvidos”. Nossos representantes perderam represen-tatividade, o que aliás é um fenômeno mundial, pois a democracia representativa carece de aperfeiçoamento.
No Brasil de hoje o povo quer serviços públicos padrão Fifa e não estádios. Temos um caminho para um novo desenvolvimento, que está a pedir formulações, estudos, racionalizações. Esta é a meu ver a missão do Centro. Estou muito entusiasmado. 
 
Como superar o neoliberalismo, que tem sido hegemônico nas últimas décadas?
O Brasil rejeitou o neoliberalismo em 2002. A eleição de Lula tem claramente esse clamor pelo resgate do papel do Estado, que é uma representação política, ao contrário do mercado. A retomada da presença do Estado significa que a nação brasileira quer um desenvolvimento e um processo político no qual o Estado esteja atuante, direta e indiretamente ordenando as prioridades da economia.
 
Muitos criticam os governos do PT por terem, de certa forma, frustrado essas expectativas...
Sim, mas estou há 50 anos na vida pública e aprendi que política é negociação. É preciso ter atenção na viabilidade política das propostas. Lula percebeu isso e logo avisou que não veio fazer revolu-ção, mas um novo arranjo político. A esquerda cobra mais, porém Lula chamou Henrique Meirelles para presidir o Banco Central como garantia para fazer programas de distribuição, retomada do planejamento. Fez essa negociação implícita e avançou onde pensou que poderia avançar. Poderia talvez ter ido mais adiante, mas certamente se lembrou de João Goulart e Salvador Allende. Já Dilma tem pouco gosto pela política. É competente e séria, mas tem uma linha mais tecnocrática. 
 
Nas cinco medidas propostas por Dilma após as manifestações, logo a primeira aponta para a manutenção do arrocho fiscal e das metas de inflação. Isto combinado com a liberalização financeira não nos deixa sem autonomia para formular políticas?
Sim. Está faltando essa dimensão política de negociar para continuar avançando no sentido de ter o controle nacional, do Estado e da sociedade, no processo econômico.
 
E como isto é possível sem gastar, sem administrar o câmbio?
O período grande de câmbio supervalorizado corroeu muito a competitividade industrial brasileira. Depois veio a reação contrária, subida rápida do dólar, que fará bem à indústria, mas no curto prazo prejudica o lado social, que também é fundamental. O projeto político de Lula e Dilma prioriza fortemente a questão social. Então há que haver atenção redobrada sobre a inflação para não eliminar o impacto positivo da distribuição de renda. Dilma está vivendo esse: não admitir que a inflação possa corroer os ganhos sociais e, por outro lado, manter um mínimo de capacidade de investimento do Estado, que é muito baixa.
 
Há exagero na aposta do governo no consumo?
Esse erro vem desde o final do governo Lula: apostar demais no consumo e dar pouca importância ao investimento, que é crucial. O Brasil tem uma história, um comportamento empresarial muito ligado à cultura do comando do Estado. Se este não investe, o empresariado não vai atrás. Então, o Estado não pode reprimir o investimento. Precisa ousar um pouco mais para chamar o empresariado a investir. Este balanço entre o investimento do Estado e a contenção da inflação resultante da alta do dólar é o dilema vivido por Dilma. 
 
Os países que comandam a economia mundial estão presos ao conservadorismo. Qual o grau de liberdade atualmente para novas formulações desenvolvimentistas?
Dos Brics deve surgir o novo rumo para a economia e a política mundiais. A China tem muito a dizer, mas é um mistério para nós. A Rússia também tem muito a dizer, por ser uma potência, mas ainda guarda muita ligação histórica com a Guerra Fria. A Índia é outra potência cultural e histórica, mas ainda tem uma enorme bolsa de miséria. A África do Sul terá muito a falar em nome do continente africano, que ficou à margem da história, mas sob o ponto de vista de cultura e tecnologia está muito aquém. Então, nos Brics, creio que o país que pode falar mais é o Brasil, por sua história relativamente vitoriosa de desenvolvimento e que encontrou o caminho democrático. Ainda mais agora, com o povo na rua. 
 
Existe dilema entre aproximação comercial com o Mercosul e a busca de mercados mais desenvolvidos para nossas exportações?
É um falso dilema. Os mercados tradicionais hoje não têm nada a oferecer de animador. O regional ainda tem. Desenvolver esse potencial me parece muito mais propício, sem desprezar o tradicio-nal. Mas outro mercado que está surgindo é a África, que está num momento de ascensão. O Brasil está cuidando disso e tem identidade cultural e histórica com os africanos. 
Infelizmente a América Latina perdeu o México, para quem só resta reivindicar anexação aos EUA, já que perdeu a autonomia. Mas o resto da América Latina tem essa situação especial: ficou sempre na periferia, mas uma periferia que costuma suceder o poder central. Os gregos foram periferia dos persas, os romanos foram periferia dos gregos. Neste momento a América Latina está ganhando dimensão, não digo para ser hegemonia, mas para ter capacidade de apontar novos rumos para o mundo.
 
Rogério Lessa
 





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